J-Hero, você abriu… e nós viemos. Bem-vindos à coluna semanal dedicada ao terror oriental. Hoje vamos finalizar as análises dos contos da obra Fragmentos do Horror escritos por Junji Itō e publicado aqui no Brasil pela Darkside Books. Para se ambientar e desfrutar da melhor maneira as maravilhas desta coletânea é aconselhado ler a primeira parte desta análise.

Estamos todos prontos?

Após os primeiros contos exploratórios e um pouco mais tépidos, o autor continua a aprofundar-se em temas amplos e decentralizados, assim como descontrole, aceitação, compulsividade, dependência e perfeccionismo. Todos chafurdam na bizarrice característica do gênero, mas nesta linha tênue entre o simples e o profundo, é possível encontrar relações claras com obsessões, ansiedade e sentimentos muito comuns.

Tomio – Gola Rulê Vermelha (com spoilers!)

Um conto ligeiramente maior e com uma definição mais clara da passagem de tempo. Aqui acompanhamos Tomio, um rapaz que, ao trair sua esposa, acaba literalmente perdendo a cabeça e precisa segurá-la no lugar para se manter vivo. Toda a arte entrega o desespero e dificuldade para que o personagem sobreviva nessa condição enquanto tenta explicar todo o ocorrido para sua companheira. Ao fim, a cartomante que o amaldiçoou o encurrala em casa, o confronta e o tortura com insinuações de sua “morte”. No entanto, a quiromante acaba sendo morta por Madoka, que salva seu esposo traidor. Ele, por outro lado, apesar de ter sua cabeça no lugar, ainda vive com medo de que um dia ela simplesmente despenque.

Sem sombra de dúvidas, um dos melhores contos desta coletânea. Uma história que entrega tantas nuances que podem ser exploradas, e mesmo assim sobrarão discussões inusitadas. A mais clara é a relação da culpa e o quanto ela é martirizante com o culpado. Podemos analisar que nosso protagonista, ao perceber seus erros, compara a morte com a perda de sua vida anterior e, portanto, ele anseia recuperá-la diretamente com seu vínculo do passado, Madoka.

Ao ser confrontado pela amante, Tomio se desespera ao encarar as coisas que fez e mudaram sua vida. Essa culpa é representada pela sensação de algo se escondendo dentro de seu corpo – por exemplo, a barata colocada em seu pescoço. Já quando Madoka “mata” a mulher, representa que os fatos e consequências não mais importam e, apesar de ser exposto de maneira sutil, logo é escancarada quando as crianças espectrais surgem e “atacam” Tomio o chamando de pai e demonstrando o vínculo deixado para trás que ainda irá assombrá-lo. Por fim, “mesmo com a cabeça no lugar”, Tomio sabe que seus impulsos podem acontecer novamente (ou pelo menos teme que aconteçam), mas agora ele se vigia para que não se desvirtue novamente, ou melhor não perca a cabeça.

Ah, para os que ficaram curiosos, mas ainda não possuem a coletânea Fragmentos do Horror, há um curta-metragem que explora a história mais profundamente:

Vale ressaltar que o filme é dirigido por Junji Itō e é um dos longas integrantes do projeto Kojuncha, no qual três dos principais mangakás de horror do Japão escreveram e dirigiram filmes baseados em seus próprios trabalhos (algum dia falaremos aqui sobre os outros filmes).

Suave Adeus (com spoilers!)

Akiko se casa com Makoto e conhece sua familia nada simpática. Mesmo sendo mal recepcionada, a garota se esforça para agradar seus anfitriões e não incomodá-los. Um dia, andando pelas dependências da enorme casa, Akiko se depara com um espectro, e, ao confrontar seu marido, Makoto explica que ali vivem as “imagens residuais” dos familiares que já morreram. Após algum tempo, Akiko descobre que está sendo traída e que na verdade morreu no dia de seu casamento se tornando uma imagem residual.

Mesmo com o clima diferente do conto anterior, Suave Adeus entrega um enredo interessante mesmo sendo previsível. O terror aqui gira em torno do desconhecido após a morte e consequentemente o apego que temos. Sutilmente, o autor expõe como o apego se desfaz no decorrer do tempo. Invariavelmente, as imagens residuais se desfazem à medida que perdem importância ou não são lembradas. Em um primeiro momento de perda, todos presentes no ritual anseiam pelo “objeto” perdido, mas à medida que a normalidade impacta a vida da família, aquele membro se torna mobília, ou melhor, esquecível.

O grande clímax analítico surge quando a protagonista ciente de seu tempo restante decide voltar para casa de seu pai. Aqui o início da história se conclui, onde a garota temia a perda morte de seu brinquedo pai, mas não considerava a perda da própria vida ou identidade. Onde seu pai lhe faltaria, ela estaria faltando para seu pai e aos demais ao redor (seu marido, familiares etc).

Ainda estão por ai?

Dissecação-chan (com spoilers!)

O estudante legista Tatsurō conhece na mesa cirúrgica uma mulher obcecada por ser dissecada. Ao confrontar seu passado, ele descobre que Tamiya foi sua amiga quando eram crianças. Com medo de ser forçado a disseca-la, Tatsurō foge dos encontros com sua velha conhecida que indiretamente o impulsionou para a carreira médica. Após várias tentativas frustradas e vinte longos anos, Tatsurō, agora um médico experiente, recebe em sua classe o corpo de sua falecida amiga. Finalmente morta e agora sem nenhuma interferência, os estudantes ao abrir o corpo de Tamiya descobrem que suas partes internas são mais horripilantes do que o imaginado.

Curto e cativante, as coincidências deste conto incomodam, mas não ao ponto de estragar a experiência. Toda a trama gira em torno da garota que quer ser dissecada e sua obsessão para que os outros a dissequem. Ao mesmo tempo, vemos uma necessidade dela de dissecar pequenos animais e até mesmo o protagonista quando jovem. Esta necessidade de ser “vista” por dentro expõe uma obsessão por ser percebida, reconhecida ou entendida a fundo. A todo momento, ela expõe como ser decifrada seria prazeroso por ela, chegando ao ponto de suas entranhas se remexerem. Uma necessidade de aceitação refletida no outro que quase é forçado a realizar essa descoberta.

Fatidicamente, quando ela é finalmente dissecada, seus órgãos internos, desformes e incongruentes, aparecem para as pessoas uniformizadas e uniformes que olham de fora. No entanto, o sorriso que encerra o conto deixa no ar uma espécie de aceitação do diferente e atípico praticado por Tamiya e seu provável âmago a quem do comum e uniforme, além, é claro, do sentimento final de descobrirem seu interior.

Nem tudo está na teoria.

Parte final no próximo domingo…

Mantendo o compromisso de entreter vocês com o melhor do horror e terror oriental, semana que vem traremos os três últimos contos desta obra maravilhosa. Mais uma vez sugiram tópicos, materiais e discussões para que possamos explorar os mais escusos âmbitos deste gênero que traz o nó na barriga que tanto gostamos.