"Há um ditado que diz que não se deve mexer em time que está ganhando. A Toei Animation vai na contramão disso. Assim como fez com Dragon Ball e Naruto ela já vinha fazendo o mesmo com Digimon. Quatro anos depois e Digimon Adventure Tri chega ao fim como uma desagradável surpresa. O  pacote de seis longa-metragens anunciados e iniciados em 2015 capturou muitos no primeiro capítulo por causa da nostalgia de rever os digiescolhidos de Adventure 01. Contudo – à excessão dos membros sombrios e obtusos do fandom dos monstros digitais – a série foi deixando a desejar e afastando quem acompanhava (ao menos fora do Japão, pois por lá a cada novo capítulo a renda no cinema era alta). Após três capítulos perguntas muito bem construídos (mesmo com fanservice dos mais diversos tipos e situações), os capítulos respostas não deram conta e fracassaram em um roteiro cheio de buracos, personagens frágeis em contexto piscológico e de ação, e mais fanservice! O final sem dúvida foi fraco, mas Bokura no Mirai (Nosso Futuro) foi um filme melhor que os dois anteriores. Deixou pontas soltas demais, é claro, e alimentou os shipps mais genéricos e glorificados pelos obscuros fãs de Digimon (foi muito MattxTai, TaixKari para uma hora e meia de exibição). Sim, Davis/Daisuke e Cia. aparecem no fim, mas ao mesmo tempo não aparecem (a explicação é apenas tosca). A vilã Himekawa desaparece e ao que tudo indica morreu, assim como seu affair que dá uma de herói até o fim. Cadê o Alphamon? Bom, ele, os Royal Knights e Yggdrasill nem dão as caras e quem não manja do universo da franquia ainda não sabe diferenciar Yggdrasil, Homeostase e agregados (disso me salvo!). Ação em nível mediano, mas boa. Surra de digievoluções – melhor forma de preencher tempo! -. No fim, o Jennai maligno escravo de Yggdrasill solta um easter-egg sobre Daemon ou Diaboromon só para confirmar o que a Toei já anunciou: que há forte chances de termos Adventure 04. Se você cresceu vendo Digimon é melhor mesmo ficar por aqui. Mais que isso é apenas decepção. E ainda tem gente que reclama de Pokémon… A Pokémon Company vai dar uma aula de cinematografia com a sequência do reboot do ano passado. Que venham Lugia e Zeraora!"

 

Esse foi o meu textão corrente que repliquei em diversos grupos de WhatsApp dos quais faço parte – todos vinculados ao Jornalismo Pop, é claro – logo após ter finalizado minha audiência de Digimon Adventure Tri: Bokura no Mirai. O texto acima é mais do que sintético e consegue expor todas as minhas opiniões sobre o fim dessa empreitada após um quadriênio completo. Mesmo assim é necessário comentar em um texto mais analítico o porque de chegarmos aqui destacando a ideia de uma total incoerência em Digimon Adventure Tri. Deixo claro que isso é uma opinião (e nem precisava dizer!), e que por isso pode vir a desagradar muita gente. Em minha defesa digo que o texto já citado foi bem recebido por colegas jornalistas e que espero que todos recebam também.

 

O que é a incoerência em Digimon Adventure Tri?

Como você pode perceber no recorte do dicionário online, uma das muitas definições para incoerência inclue justamente a de "falta de lógica; ausência de ligação, de nexo entre fatos". Não é exagero nenhum afirmar que isso acontece na sequência de seis longa-metragens da Toei Animation. Para facilitar nossa explanação vamos comentando por parágrafo os principais tópicos de cad filme. 

 

Saikai (Reunião)

Sem dúvida o melhor dos seis filmes. Saikai foi a bomba nostálgica que a Toei Animation preparou para seus fãs no mundo inteiro. É válido lembrar que Digimon é uma franquia viva e em constante rotatividade. Com sua característica transmidiática habita em diversas mídias com narrativas completas que se integram e não necessariamente dependem uma da outra. Tudo isso no intuito de manter e ampliar a mitologia criada para a franquia criada pela Bandai em 1997.

Saikai reuniu – como o próprio título reafirma – seus principais protagonistas, os oito digiescolhidos do primeiro grande sucesso da franquia (Digimon Adventure) e seus parceiros digimons quatro anos após os fatos de Digimon Adventure 02. Para contextualizar isso somos apresentados nos primeiros minutos de filme à uma cena de tensão com as sombras de Daisuke/Davis, Miyako/Youlei, Iori/Cody e Ken sendo derrotados. Mas por quem? A resposta definitiva vem em Bokura no Mirai – último filme da trama – e não dá um solução coerente para eventos que se desenrolam ao longo dos filmes seguintes.

Esse primeiro longa-metragem introduz também Alphamon no cenário Adventure. Antes a personagem só havia aparecido em jogos e em um filme exclusivo seu (Digimon X Evolution). Entre as cenas de reencontro e nostalgia e aparição de uma nova personagem, Meiko, e sua parceira digimon Meiccomon, somos apresentados ao plot da trama. Digimons estão sendo corrompidos e distorções estão ligando o mundo real e o digimundo. O frisson fica por conta do combate entre Alphamon – que estaria perseguindo Meiccomon – e Omegamon, que defende a ilha de Odaiba do ataque. O cenário perfeito para uma sequência estava armado, pena que não foi correspondido à altura.

 

Ketsui (Determinação)

O ápice desse filme sem dúvida é a batalha entre Vikemon e Rosemon (que alcançam a forma extrema pela primeira vez na animação) contra um infectado Imperialdramon. Pausa para a pergunta: Como Imperialdramon – a forma extrema da jogress entre ExVeemon e Stingmon – estaria ali enfrentando-os? Inicialmente a resposta seria: Ken Ichijouji por alguma razão voltou-se para as trevas novamente e retomou a alcunha de Kaiser Digimon, não a toa ele aparece no filme tentando capturar Meiccomon. Mas uma vez a nova digimon é alvo de um adversário poderoso. Qual seria a ligação entre Alphamon e o Kaiser Digimon? A reposta mais a frente.

Entre mais uma morte patética de Leomon e uma tentativa fajuta de tentar evoluir os digiescolhidos psicologicamente numa ideia de amadurecimento, a maior incoerência começa a se desenhar aqui. Se o Kaiser Digimon apareceu o mais correto a ter sido feito era tentar encontrar os outros digiescolhidos. Uma simples ligação telefônica não resolve e é isso que se faz apenas! Só eles saberiam explicar o que acontece, mas como já se tem personagens demais na trama (e a ideia vendida era de que era um filme para salientar a nostalgia da primeira animação) os escolhidos de Adventure 02 só seriam meros figurantes.

 

Kokuhaku (Confissão)

Tudo fica mais confuso ao final do terceiro filme ao vermos que o Kaiser Digimon na verdade era Jennai (jovem) e que ele interage com Maki Himekawa, uma representante dos assuntos digitais do Governo Japonês. Afinal, quem é essa mulher e como ela sabe tanto sobre digimons e o digimundo? Aqui um ponto positivo. A mitologia de Digimon precisava ter essa inserção de elementos chamada Maki Himekawa e seu parceiro Daigo Nishijima. Ao longo dos filmes seguintes descobrimos mais segredos envolvendo eles e o digimundo, segredos esses que são quase que base fundamental para os acontecimentos de Adventure e Adventure 02. Mas ao que parece Keitaro Monotaga (direção) e Yuuko Kakihara (roteiro) usam e abusam demais da própria mitologia da franquia. Homeostasis, uma forma de vida digital considerada uma divindade e que desde os primeiros animês vem guiando a luta dos digiescolhidos, volta a dar as caras e relata sobre a reinicialização. Tudo com o intuito de impedir que seu principal adversário, Yggdrasill, assimile o mundo real ao digimundo.

Parentêses aqui: Caso você ainda não saiba, Homeostasis e Yggdrasill são ambos computadores que assumem o papel de entidades digitais. Um tem a função de manter o equilíbrio existencial entre os dados digitais e o mundo humano, o outro busca anexar ambos em um único contexto. Numa analogia ao universo da informática, Homesotasis – que tem no nome a ideia de equilíbrio, estabilidade – é como um firewall, que tem como função ser do tipo appliance, que funciona em combinação entre softwares e hardware. Ou seja, Homeostasis é um computador que faz a manutenção do digimundo. Yggdrasil por sua vez é um server que tem como função criar e replicar arquivos numa relação cliente-servidor onde tudo é armazenado e acessado bastando que se tenha as diretrizes que lhe permitem isso. Também considerado um deus do digimundo, Yggdrasill busca assimilar e comandar a rede de computadores e para isso conta com seus leais servos, os Royal Knights liderados pelo lendário Alphamon, ou mesmo com a parte obscura da rede (no caso os Mestres das Trevas). Aqui uma incoerência pertimente aparece. Só quem consome tudo de Digimon vai entender as articulações aqui presentes. No multiverso narrativo de Adventure, essas duas entidades são como se fossem derivações de Einiac, o primeiro grande computador, aquele que criou o digimundo. A não existência de referência a essa entidade ou ao fatos desencadeados por suas alterações (o caso Ryo Akiyama) levam Digimon Adventure Tri a ficar nebuloso demais para quem vinha acompanhando.

Kokuhaku encerra uma fase que chamo de capítulos-pergunta – onde os elementos de mistérios são inseridos –  e deixa diversas pontas a serem costuradas por quem se propôs a seguir acompanhando. Isso gerou muita polêmica, pois de teoria é que o fandom de Digimon é feito e essas polêmicas não foram respondidas com assertividade nos filmes posteriores.

 

Soshitsu (Perda) 

O primeiro dos capítulos-resposta dá uma colher de chá ao nos revelar que Maki e Daigo são dois remanescentes dos cinco digiescolhidos originais que no passado enfrentaram os o Grande Mal que atravessou a Parede de Fogo e Mestres das Trevas (aqui há sabedoria, e entende-se que isso se reflete diretamente numa briga entre Homeostasis e Yggdrasill). Serve também para nos explicar a origem dos quatro digimons sagrados: Azulongmon, Baihumon, Ebonwumon e Zhuqiaomon, o grupo conhecido como Harmonious Ones, que foi citado diversas vezes ao longo de Adventure 02 e explicou em definitivo a origem dos digiescolhidos. Essa enxurrada de elementos mitológicos e o pouco tempo dedicado a sua explicação fazem esssa a maior incoerência de um filme que inicialmente foi vendido como marketing nostálgico de vinte anos de franquia. A referência marcada à Adventure pediria uma sequência enxuta e sem conexões com os elementos transmidiátivos da franquia.

Soshitsu acaba sendo um filme sem proveito algum e o pior de todos os seis que seriam lançados. Os digimons sofrem reboot, perdem seus dados-memória e uma reaproximação forçada em alguns minutos é o suficiente para levar digimons como Biyomon (lembre-se que é assim que se escreve agora!) e Patamon a alcançaem a forma extrema de forma pouco proveitosa e simplesmente como fanservice. A de Biyomon para Phoenixmon (Houhoumon no original) ao menos teve nexo na trama, pois ela e Sora eram as protagonistas do quarto filme, mas a de Patamon… Aqui creio que recurso que pode-se usar como defesa é o fato de que ele já havia alcançado a forma em um longa-metragem de anos atrás.

Como capítulo-reposta Soshitsu só serve para confirmar a hipótese de que Meicoomon era o famoso "demiurgo" disputado pelas duas divindades digitais. Uma em busca do caos, a outra da ordem. Meiccomon seria ao mesmo tempo a ferramenta que deletaria tudo e o back-up, apenas um grande dispositivo de memória. Ter seu controle seria dominar o digimundo.

 

Kyousei (Coexistência)

O quinto filme é um refugo de informações mal exploradas e um absurdo de fanservice. O melhor duelo entre formas extremas envolvendo Jesmon, Omegamon e Alphamon (que tinha aparecido uma segunda vez antes enfrentando Jesmon após o reboot lá no terceiro filme) ficou completamente descontextualizado. Como se sabe os Royal Knights embora conjurados por Yggdrasill escolhem quem querem servir. Jesmon optou por crumpir a vontade de Homeostasis. A título de informação, o Omegamon de Tai e Matt não é um Royal Knight, mas uma luta entre eles seria fabuloso para o filme, e foi. Só que… Alphamon desapareceu! Se sabe agora qual a relação dele no filme: era um enviado de Yggdrasill, assim como o maligno Jennai. Mas porque usar uma personagem tão representativa e não lhe dar um papel de destaque? Não lembro nem de ter ouvido a voz de Alphamon! Que incoerência pessoal!

Uma fusão maluca entre uma Razielmon (forma extrema de Meiccomon) corrompida pelas trevas e uma digievolução nas trevas de Tailmon em Ophanimon Falldown Mode nos leva a Ordinemon, o "demiurgo" que cria e destrói. Homeostasis não tem controle sobre a criatura e Yggdrasill se aproveita disso para executar seu plano. Um filme inteiro resumido nesse único acontecimento nos levou a um final onde muitas perguntas, para pouco tempo de respostas, deveriam ser abordadas.

 

Bokura no Mirai (Nosso Futuro)

E assim chegamos em um sexto filme que tinha a missão de encerrar uma trajetória com chave de ouro e foi no mínimo plausíviel nos seus acontecimentos para não acabar de forma equívocada. Quero eu acreditar que todas essas incoerências que citei – e que espero que você também tenha percebido – foram propositais e serão melhor esclarecidas em uma provável sequência anunciada pela Toei no Twitter.

Digimon Adventure Tri é com toda certeza o ápice narrativo da franquia que se fragmentou e se reinventou diversas vezes com exemplos como Xcross War e Universe: App Monsters. Adventure ainda é a menina dos olhos dos fãs de Digimon, o problema é que ele foi completamente mal trabalho quando se senta para identificar esses buracos narrativos que nos fazem acreditar que tudo foi pura e simplesmente ação mercadológica (no fundo sabemos que sim, mas queremos não acreditar).

Sem esclarecer nem uma dúvida, Digimon Adventure Tri já ficou marcado para muitos (ao menos por aqui no Brasil) como o pior trabalho envolvendo o título Adventure já feito. Salva-se muito pelas repaginadas nas canções-tema e também na homenagem final feita a Kouji Wada.

Quem sabe um Digimon Adventure 04 não corrija tudo isso e esse texto daqui a algum tempo é que seja incoerente.

Até a próxima e… Sayonara!