Os fãs ficaram chocados quando os sites de animês, mangás e cultura pop japonesa noticiaram a prisão de Nobuhiro Watsuki pelo crime de pornografia infantil. O autor, famoso pelo seu trabalho em Rurouni Kenshin, foi preso pela Polícia Metropolitana de Tóquio estando de posse de material audiovisual que envolviam crianças (meninas) em atos e conteúdos proibidos por lei desde 2014 naquele país.
A imprensa japonesa e mundial não mediu esforços em, de imediato, trazer sobre o mangaká a alcunha maldita de lolicom. O que ficou mais nítido após uma declaração dada por ele ao confessar a posse do material. Nobuhiro afirmou que sempre gostou de garotas entre o final do primário e o segundo ano do ginásio. Serei breve aqui ao taxar um julgamento sobre a figura pública de Nobuhiro Watsuki: lolicom ou em bom português pedófilo!
Serei também breve sobre outro julgamento – este sobre o público fã de mangás e animês – que veem à tona a partir dessa situação noticiada e a forma como ela repercutiu. Hipócritas! Sim, somos todos hipócritas!
Parece que estou sendo grosso, e até mesmo injusto, mas quem de vocês percebeu que sempre que um assunto desse vem à baila não somos capazes de refletir sobre o que consumimos? A justiça japonesa tornou crime em 2014 o consumo de conteúdo audiovisual e fotográfico com apelo sexual voltado para o segmento infantil. No entanto a mesma lei não foi mais a fundo e barrou isso também nos animês e mangás, por achar que ficcção e realidade são distintas.
O engraçado disso é que me lembro de um caso emblemático para a história da formação da tribo social dos otaku toda vez que um caso de pornografia infantil ou essa afirmação de que a ficcção não interfere no real são apresentadas pela mídia: me refiro ao Caso Miyasaki.
Não, não estou falando do amado Hayao Miyazaki do Studio Ghibli, me refiro mesmo é a Tsutomu Miyazaki, morto por enforcamento em 2008, após sentença marcial que determinou essa pena para os crimes de sequestro, abuso sexual e assassinato de quatro meninas japonesas entre 1988 e 1989 lá no Japão. Tsutomu, caso você não saiba, é conhecido como "otaku assassino" ainda hoje pela mídia japonesa e pesquisadores internacionais que estudam a cultura pop japonesa. Descoberto após seus crimes hediondos (onde em um deles chegou a comer a mão de uma das vítimas já mortas) o serial killer nipônico acabou estigmatizando um grupo social que se formava na época. Sim, falo dos otaku. Tsutomu Miyazaki era um desses otaku que começavam a se organizar lá no Japão. Em seu quarto a polícia encontrou diversos itens de otaku: VHS com animês gravados, mangás, garage kits e dezenas de conteúdos de filmes de terror (seu gênero preferido). O problema é que além disso também encontraram material que focavam na sexualização de meninas assassinadas por ele.
Na época Miyazaki foi preso pelos assassinatos e não pela posse dos materiais listados. Mas isso foi o suficiente para a criação da má fama sobre os otaku. Miyazaki se tornou o símbolo de que todo otaku é pervertido e doentio e isso se arrasta até hoje. O jornalista Akio Nakamori, o homem por trás da oficialização midiática do termo otaku como se é feito hoje, ajudou mais ainda a repercutir isso em seu livro M no Jidai, que relata o caso Miyazaki.
Voltemos ao tempo presente. Diferente de Miyazaki, Nobuhiro Watsuki só não sequestrou ou assassinou garotinhas (até onde se sabe), mas ao manter posse de material pornográfico infantil ele contribuiu da mesma forma que Tsutomu para a manutenção desse tipo de crime e o estigma negativo sobre a cultura do manganime. Não à toa, recentemente, antes do escândalo que motivou esse texto, um outro serial killer tomou os noticiários japoneses.
Com uma abordagem diferente da de Tsutomu Miyazaki (que espionava as vítimas), Takahiro Siraishi atraia suas vítimas pelo Twitter. Bastava alguém dizer na rede social que a pressão social lhe deixava com desejo de cometer sucídio que ele procurava "saciar" o desejo da vítima contra sua vontade. Esse caso aconteceu agora em 2017, cerca de 28 anos depois dos crimes de Tsutomu Miyazaki, mas não demorou muito para a imprensa japonesa querer associar o assassino aos otaku, isso porque ele tinha alguns itens de coleção (o que ao meu ver é normal para a maioria do jovens japoneses). Diferentemente de Miyazaki houve quem viesse à imprensa e tratasse de desmentir tal afirmação. Pessoas próximas de Siraishi foram efuzivas ao afirmar que ele não era um grande fã de mangás e animês e que seria muito difícil que os crimes estarem ligados a uma possível influência por parte deles. Mesmo assim o estigma já havia sido divulgado.
Percebe o quanto é tênue a linha entre a pornografia infantil e a cultura do manganime? Se ainda não percebeu esse é o momento para que eu explique porque denominei a todos nós de hipócritas.
Logo quando a prisão de Nobuhiro repercutiu muitos comentaram na internet que essa questão da sexualização de garotinhas em mangás e animês é normal e cultural no Japão. Não! Isso não é normal em lugar nenhum! Pode até ser cultural em alguns povos do mundo pelo fato de que infelizmente nem todos evoluem da mesma forma, mas no Japão isso não é cultural. O capitalismo é negativo no momento que fomenta esse tipo de produção, circulação e consumo, mas isso não é cultural.
Entretanto não posso deixar de dizer que o que nos leva a pensar que é cultural é vermos diariamente personagens meninas (lolis) cada vem mais sexualizadas nas animações que acompanhamos. E a linha tênue se segue porque se a indústria deixa de comercializar isso o fã deixa de consumir. O japonês é cheio de fetiches e o público ocidental passou a reconhecer e categorizar tais fetiches ao ponto de considerá-los normal para o consumo. Mas não se engane, mesmo a sociedade nipônica reconhecendo que seu consumo é dotado de fetiche eles buscam combater isso.
Desde 2011 vigora na metrópole de Tóquio uma lei que busca controlar a circulação do material produzido pela indústria do manganime que contenha conteúdo sexualizado como nú excessivo, atos sexuais explícitos, casamento ilegal entre parentes (incesto) e qualquer conteúdo que promova o BDSM.
Conhecida popularmente como Lei Anti-Otaku, há quem diga até hoje que a lei é infeliz e prejuddica o desenvolvimento da indústria. Isso entre fãs e investidores. Mas a Lei Anti-Otaku é a forma como a administração pública buscou mostrar que os japoneses ainda possuem valores e que por meio da ficção se pode sim criar uma ideia errada do que se vive no mundo real.
Tal lei não busca acaba com o manganime, mas sim evitar que esse tipo de excesso prejudique a formação social da nação. De todo modo a lei não impediu a produção de animês do tipo (como você deve perceber ao acompanhar as temporadas lançadas em cada novo trimestre). Pelo contrário! Cada vez mais o conteúdo vem ficando mais e mais explícito e mais e mais garotas entre 10 e 17 anos são sexualizadas de forma abusiva em suas tramas. Quando não, garotas mais velhas são retratadas como lolitas apenas para fugir do estigma e manter o fetiche! Quem aqui lembra do frisson que foi a descoberta de que a Asuna de Sword Art Online pagaria um "peitinho" no filme da franquia? Tanta comoção por causa disso momstra o quanto está corrompido o caráter dos animês e mais ainda do seu grande público. Alimentam muito mais os fetiches do que trabalham no desenvolvimento de uma história. Eromanga-sensei é outro exemplo recente de como isso está impregnado. Muitas lolis em momentos muito pervetidos e algumas delas com duplo sentido em tudo o que falam e fazem. Depois reclamam quando ainda há que fale de otaku nojento pelas bandas de lá.
Por aqui caminhamos no mesmo caminho, mas em escala menor. Nossa relação com a pornografia infantil não é tão escancarada quanto lá, mas ela existe. O reflexo disso está no alarmante crescimento de caso de abusos sexuais contra menores de idade. Se passarmos a achar isso tão natura buscaremos reproduzir no mundo real.
Não é que esteja dizendo que somos alienados ou que devamos para de consumir animês. O que quero dizer é que assim como a ficcção sempre foi influenciada pelo real, o caminho inverso também sempre existiu. Se não formos mais corretos na hora de avaliar o que assistir e como assistir em algum momento poderemos considerar normal aqui que não deve ser e assim cair no mesmo tipo de situação que Nobuhiro Watsuki que é muito cretino ao anunciar que acha normal se sentir atraído por menininhas.
Por fim… Outra pergunta se é feita: e como fica minha relação com as obras de Nobuhiro Watsuki? Bom, ele vai pagar uma multa e quem sabe ficar um ano preso. Depois volta a sua vida normal. A Sueisha, por exemplo, só suspendeu seu trabalho com ela, mas não cancelou projeto. É uma opção da empresa vincular sua imagem a um consumidor de pornografia infantil. Afinal de contas ela mantém um ou outro momento ecchi em obras publicadas por ela. Voltando ou não a publicar Nobuhiro sempre será lembrado por esse escândalo. Sorte dele (se é que isso é sorte!) é que sua obra de maior sucesso é muito maior do que isso.
Ele continuará sendo sempre lembrado como o autor de Rorouni Kenshin, mas agora também como o cara do escândalo que disse gostar de garotinhas. Vai de cada um de nós fazer a análise disso e ter consciência que um homem responde por seus atos, mas suas obras não. Fica livre cada um para abandonar o autor ou permanecer lendo-o. O mais importante é que na consciência tenhamos conhecimento que a sexualização e a pornografia infantil é crime e não devemos alimentar isso.
Até a próxima e… Sayoanara!