O que sabemos ou entendemos por Mídia Propagável? Para o pesquisador e professor de Comunicação do MIT, Henry Jenkins seria o enfoque na lógica social e práticas sociais que favoreçam e popularizem conteúdos através de novas plataformas. Seriam as mídias propagáveis catalisadores de cultura e caminhos disponíveis para a disseminação e popularidade de determinado produto/conteúdo.
Em sua obra Cultura da Conexão – criando valor e significado por meio da Mídia Propagável, ele e os pesquisadores Joshua Green e Sam Ford detalham de maneira exemplar os processos e tramitações que permeiam o universo existente entre criadores de conteúdo e os fãs. Para os três, as mídias propagáveis são os novos caminhos para que os dois setores possam se beneficiar do produto/conteúdo sem que alguém se sinta prejudicado (embora sempre haverá quem de fato se sinta lesado).
A referência dessa leitura (para caso alguém quera entender mais do que se quer tratar nas linhas a seguir) é importante para que se venha destacar a situação que se formou no fim da noite de ontem e início da manhã de hoje no fandom brasileiro de otakus e leitores de mangás de um modo geral. A Editora JBC, uma das três principais empresas do ramo literário que investe no setor dos quadrinhos orientais no Brasil, comunicou oficialmente scanlators e sites repósitórios onde se é possível acessar o conteúdo extra-oficial de mangás traduzido em português no formato digital. A empresa solicitou que fosse feito a retirada (ou bloqueio) do conteúdo de mangás os quais ela detém a licensa de publicação no país.
A primeira pergunta: a JBC está errada? A resposta imediata é não. Amparada pela Lei de Direitos Autorais n° 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 no Capítulo II, Artigos 28 e 29, que diz:
Só que com isso é possível compreender que a JBC é livre para se manifestar contra a distribuição ilegal desse tipo de conteúdo. Entretanto a editora cometeu deslises na forma como procedeu, pois uma empresa que se preze e pensa em seu público deve antes avaliar a repercussão de suas ações diante de seus consumidores. E ao que parece a JBC não fez isso. Diversos sites e blogs do fandom otaku brasileiro estão criticando a decisão da empresa que acabou fazendo com que títulos expressivos como HunterxHunter, Fairy Tail, Boku no Hero Academia, CDZ e seus derivados e etc. ficassem indisponíveis para a leitura online.
Contudo, a editora não dá chances para os consumidores terem acesso a essas leituras a não ser por meio da aquisição de seu exemplares. Para os títulos novos e em publicação isso não é problema. Mas e nos casos de títulos não mais comercializados por ela mesma ou que não se encontram nas lojas especializadas? Títulos que por parte da própria empresa não possuem nenhum tipo de projeto de reimpressão ou lançamento em formato dito de "luxo"?
Eis um tiro no pé. A comunidade otaku e leitores de mangá não desistirá de ter acesso as suas leituras apenas por uma imposição. O descumprimento da lei é sério, mas não é ignorado por ninguém. É fato que existem promovedores desses sites de leituras online que se beneficiam dos acessos em seus domínios, mas originalmente e essencialmente o scanlator é uma atividade-fã com mérito dedicado em atender os fãs de um título. Isso considerando que ainda é dispare o número de obras lançadas no Brasil e o que se é publicado no Japão. Visto também que é dispare a velocidade com que se faz isso e os problemas enfrentados pelas editoras com liberação de licença, editoração e distribuição.
Algo sempre posto em xeque pelos leitores é a qualidade do trabalho exposto pelas editoras. Traduções incoerentes, trabalho gráfico inconstante… Enfim, os pormenores enfrentados por um mercado emergente. Isso constrastando com o serviço dos scanlators que: trabalham em tempo recorde para manter atualizadas as publicações, se organizam a fim de traduzir o maior número de títulos por temporada e semanalmente a proporção que saem os lançamentos… Está certo que isso é feito por um número muito maior de pessoas, mas como não é feito com o intuito de lucro direto não haveria a obrigatoriedade de se fazer isso com qualidade.
No caso do mangá Fairy Tail, por exemplo, atualmente eram scanlators brasileiros os primeiros a disseminar os novos conteúdos da obra de Shiro Mashima na web. Scans de outros países estavam se aportando nos daqui para dar continuidade a este trabalho. Ao falar das mídias propagáveis Herny Jenkins diz que a "propagabilidade enfatiza de conteúdo em formatos de fácil compartilhamento (…) encorajando pontos de acesso ao conteúdo numa variedades de lugares".
Ele afirma também que a propagabilidade "valoriza as atividades de membros da audiência que ajudem a gerar interesse por determinadas marcas ou franquias". Essa afirmação é a base de uma estratégia de marketing ou economia afetiva que deve ser respeitada pelas empresas e consumidores. E a JBC não faz isso. Se não oferece meios para que o compartilhamento fácil de conteúdo seja feito de forma legal não há porque reprimir de forma opressiva quem, acima de tudo, busca manter a sustentação de uma cultura de nicho e mercado.
(Página do site Mangá Project que acotou a decisão cumprindo a lei, mas não deixou de alfinetar a JBC)
Os exemplares físicos da JBC são e sempre serão bem-vindos assim como os de suas concorrentes. Contudo estas devem compreender que o consumo de mangás (e quadrinhos de forma geral) é um substrato da atividade-fã inerente aos colecionadores. Isso porque movimenta grande valores e demanda. Não estamos mais no início do século XXI onde um exemplar de mangá custava entre R$ 2,90 e R$ 5,40 (da época da Conrad). Hoje o preço de capa embora ainda acessível (R$ 13,90) contrasta com os meios de distribuição (somas absurdas de valores de frete) e os ditos exemplares de luxo (feitos para os mais finos colecionadores) com média de R$ 60,00.
O demanda de consumo aumenta (novos títulos), mas as facilidades de aquisição não existem. A própria JBC anunciou há um ano a proposta de um serviço de leitura online de seus títulos, Henshin Drive, que atualmente apresenta uma mensagem de "inscrições para o teste beta encerradas" em sua página oficial. Caso venha a se concretizar o serviço poderia justificar a decisão da empresa que, reafirmo, embora seja correta e legalizada está sendo feita de forma arbitrária e em momento inoportuno.
(Cadê o Henshin Drive amigos da JBC?)
A equipe da Rádio J-Hero (por meio da redatora Fany-Chan) acompanhou a discussão sobre o assunto no Twitter e tentou diálogo com representantes da editora. Em sua página pessoal Cassius Medauar, gerente de conteúdo da JBC, respondeu nossa pergunta as reimpressões de títulos esgotados. Ele apenas disse que a empresa faz isso "na medida do possível". O problema é: será que isso é suficiente? Confira a resposta dele abaixo:
(No Twitter Cassius responde aos questionamentos de fãs sobre a decisão)
Se a JBC – e isso vale para as demais como Panini e NewPOP – não reformularem suas estratégias de marketing e relacionamento com o público otaku chegará um momento que o diálogo entre os dois lados será insustentável. O próprio Henry Jenkins usa como estudo de caso em determinado momento de seu livro o case Crunchyroll, que começou como um serviço ilegal de stream e hoje é o canal oficial de milhares de fãs em quase 20 países para o consumo legal de animês, doramas e mangás. Recentemente o Crunchyroll anunciou que em breve deverá atuar no Brasil a partir de um domínio naiconal (.br). Quem sabe com isso os mangás (que ainda estão em inglês) possam vir a ser consumidos através da nossa língua mãe.
Esta será uma outra briga que as editoras irão comprar e será que que darão conta de enfrentar a start-up norte americana? O tempo dirá. O fato é que os tempos são outros, mas nossos produtores de conteúdo pararam nele e ainda acreditam que apenas ofertar títulos novos com anúncios extraordinários sem previsões de lançamentos e irregularidades nas publicações será o suficiente para calar o fandom.
Referências:
BRASIL. Lei dos Direitos Autorais. Lei n° 9.610 de 19 de fevereiro de 1998 que altera, atualiza e consolida a legislação sobre direitos autorais e dá outras providências. Disnponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9610.htm.
JENKINS. Henry. et al. Cultura da Conexão: criando valor e significado por meio da Mídia Propagável. São Paulo-SP: Aleph, 2014.