"O homem é o lobo do homem."

Thomas Hobbes em Leviatã

 

Quando em 1651 o filosófo e político inglês Thomas Hobbes escreveu sua obra de maior renome – Leviatã ou Matéria, Palavra e Poder de um Governo Eclesiático e Civil – que popularizou-se apenas como Leviatã, ele já fala sobre a capacidade do homem de ser ele mesmo seu carrasco. A máxima em metáfora expressada pelo pensador se refere ao fato de que somos nós mesmos nossos próprios inimigos quando buscamos viver quer seja individualmente ou em sociedade.

É baseado na frase de Thomas Hobbes que início essa pequena discussão sobre o animê Youkoso Jitsuryoku Shijou no Kyoshitsu e (que chamaremos apenas de YoukoJitsu). Ao longo de seus doze episódios acompanhamos a repulsiva convivência entre estudantes de uma escola de elite que buscam sair dali prontos para serem os melhores na sociedade japonesa. A animação produção do Studio Lerche com direção de Seiji Kishi (Angel Beats!, Assassination Classroom) e Hiroyuki Hashimoto (Code Geass, Bakumam) é baseada na light novel de Shougo Kinusaga (roteiro) e Shunsaku Tomose (arte), que conta a trama de um grupo de estudantes dividido em quatro turmas – A, B, C e D – onde cada um é destinado para uma delas de acordo com seu desempenho e a partir daí restam às classes disputarem entre si pelo título de "a melhor".

Técnicamente falando, o animê que teve tudo para ser um sucesso acabou não rendendo tanto como se imaginava, mesmo tendo sido um dos mais assistidos nas Américas neste verão. Para quem já acompanhava a light novel ou passou a fazê-lo com a estreia do animê muita coisa importante foi deixada de lado. Outro questionamento feito é a valorização da protagonista Suzune Horikita em detrimento de outras personagens que possuem participações importantes ao longo da narrativa. Mas nosso foco não é esse.

O destaque para essa matéria é a Filosofia Moderna como componente de descrição e compreensão da atuação do protagonista Kyotaka Ayanokoji, que se mostrou um dos melhores de 2017 – mesmo sendo considerado um dos mais escrotos dos últimos tempos – sua racionalidade diante das relações sociais com os próprios colegas da Turma D e com os alunos das demais turmas faz uma crítica dupla à sociedade japonesa e também ao ser humano de um modo geral.

Kyotaka Ayanokoji é o esteriótipo de muitas situações vivenciadas pelo ser humano enquanto indivíduo em sociedade. Para não se indispor com ninguém, e também não se prejudicar, não se importa de passar por cima de quem quer que for para obter êxito. O que mais chama a atenção para isso (se você assistiu o animê e até aqui está entendendo o que eu disse) é que para cada novo episódio um argumento filosófico nos era apresentado logo no início como forma de ilustrar as situações vivenciadas pelos protagonistas, coadjuvantes e antagonistas em YokoJitsu. Vamos a elas:

 

Episódio 01

"O que é mal? Tudo que surge da Fraquesa."

Friedich Nietzsche em O Anticristo

 

Episódio 02

"Exige habilidade para ocultar que se tem grandes habilidades."

François de La Rochefoucald em Reflexões ou sentenças e máximas morais

 

Episódio 03

"O home é um animal de barganhas: nenhum outro animal faz isso, cachorro algum troca osso com outro."

Adam Smith em A Riqueza das Nações

 

Episódio 04

"Não devemos nos irritar com quem esconde a verdade da gente quando frequentemente escondemos a verdade de nós mesmos."

François de La Rochefoucald em Reflexões ou sentenças e máximas morais

 

Episódio 05

"O inferno são as outras pessoas."

Jean-Paul Sartre em Sem Saída

 

Episódio 06

"Há dois tipos de mentiras: uma é sobre fatos consumados, o outro é sobre deveres futuros."

Jean-Jacques Rousseau em Emílio, ou Da Educação.

 

Episódio 07

"Não há nada tão perigoso como o amigo ignorante: é preferível o inimigo sábio."

Jean de La Fontaine em Fábulas

 

Episódio 08

"Abandone toda a esperança, vós que entrais aqui."

Dante Alighieri em Divina Comédia – Inferno: Canto 3, Verso 9.

 

Episódio 09

"O homem está condenado a ser livre"

Jean-Paul Sartre em Existencialismo e Humanismo

 

Episódio 10

"Todo homem tem em si o traidor mais perigoso."

Kierkegaard em Trabalhos de Amor

 

Episódio 11

"Em geral chamamos de destino as asneiras que cometemos."

Arthur Schopenhauer em Pequenos escritos filosóficos

 

Episódio 12

"Os gênios vivem apenas uma história de loucura"

Arthur Schopenhauer em Parerga e Paralipomena

 

Numa reflexão rápida em cime destas doze máximas podemos perceber a evolução das informações sobre Kyotaka Ayanokoji e seus companheiros diante do jogo sujo e parcial que é viver em sociedade. A disputa revela o lado mais verdadeiro de cada um. A máxima do episódio 02 de autoria de La Rouchefoucald, por exemplo, se refere diretamente ao protagonista e seus infinitos segredos. O mesmo pensador volta a ser citado no episódio 04 para ilustrar a personagem Airi Sakura e o primeiro desafio da Turma D que dependia dela para ser superado.

A máxima de Jean de La Fontaine para o episódio 07 – o episódio da piscina – nos mostra a sagacidade de Kyotaka Ayanokoji em saber usar as pessoas a sua volta para evitar um possível problema. A última máxima também é descritiva a respeito dele, ao citar a genialidade como uma espécie de loucura. O protagonista deixa claro ao fim do animê que não encara ninguém como aliado e faz a crítica final à sociedade quanto ao nosso desejo de querer estar bem e lutar demais contra limites. O diálogo sobre Íkaro e Dédalo citado no mesmo episódio 12 fala de uma liberdade não contemplativa, mas repressiva e cheia de lutas que só existe para sufocar as decisões que venham a se posicionar de forma contrária.

YoukoJitsu tem uma trama muito boa, mas não foi aproveitada com louvor. Quem segue na light novel se delicia com um banquete envolvendo conflitos e disputas muito bem elaboradas para um slice of life. O que fica de bom é esse diálogo direto com a Filosofia Moderna e o despertar – talvez – no interesse de nos estudarmos enquanto seres humanos vivendo em sociedade.

Até a próxima e… Sayonara!