Se você é daqueles que aguardou a estreia de Death Note (2017) no catálogo da Netflix essa é a oportunidade de descobrir como outra pessoa encarou o filme. Se sua análise é parecida ou diferente das linhas a seguir vamos descobrir juntos e nos divertir com essa atividade prazerosa que é comentar um novo filme. Se você ainda não assistiu e mesmo assim quer ler, um aviso: você não será obrigado a concordar com o que foi dito, mas não me culpe se ao ver o filme não deixar de lembrar do que está escrito aqui.
Já li os primeiros comentários e resenhas em sites especializados sobre o assunto. Virei a madrugada assistindo esse filme para escrever aqui. De imediato vou logo dizendo que não, o filme não é ruim. Para quem passa horas sentadas na frente do PC assistindo Defensores e outras estreias do catálogo da empresa pode ter parecido que Death Note (2017) nada mais foi que uma releitura aquém do mangá original de Tsugumi Ohba e Takeshi Obata. De certo que sim, mas isso por si só não desmerece o trabalho do diretor Adam Wingard.
O diretor do longa-metragem de 125 minutos é uma figura mediana no cinema norte-americano onde O Hóspede é seu trabalho mais lembrado. Trabalhando com suspense e terror ele buscou levar esses elementos para a trama da adaptação no melhor estilo Cinema B dos Estados Unidos. Se é assim por que o filme me agradou? Bom para explicar isso vou dividir a seguir a resposta em pontos positivos e negativos e logo depois comentar sobre.
(Olha a cara desse Light. Te inspira alguma coisa?)
Pontos Positivos
Devo começar pelos pontos positivos para que não crie uma imagem mais negativa do que se já possa criar sobre o filme. Pontos positivos são aqueles que fazem do filme uma obra com valores próprios. Tais valores podem ou não levar em consideração o fato de ser uma obra adaptada. São eles:
– LIght Turner (o nome americano do protagonista chamado no mangá de Light Yagami) é realmente um adolescente no seu jeito de agir e pensar;
– L é uma personagem menos surreal do que no mangá. Mais humano do que aparenta ele de fato transparece as inconstâncias de uma mente conturbada;
– Mia, a Misa Amane da versão adaptada, é uma jovem mais irritante – de uma maneira diferente – que a versão original. Uma mente mais manipuladora que o normal, sociopata;
– James Turner, o Soichiro Yagami da adaptação, se mantém o papel do pai e policial ignorante sobre o que acontece à sua volta;
– Watari é o coadjuvante que reúne todos os demais que não foram adaptados sem deixar de ser ele mesmo;
– Ryuk é o grande nome do filme graças à interpretação de William Defoe. De verdade um Shinigami;
(Mais agressivo, Ryuk se apresenta com a fisonomia e avoz de William Defoe)
Pontos Negativos
Por pontos negativos estamos realmente falando das questões adaptação. Textos e cenas que não combinam de maneira nenhuma com a proposta de Death Note e que levam o fã mais arredio a odiar o filme da Netflix. São eles:
– O desafio entre L e Kira é menos pomposo e desenvolvido. O duelo de intelectos não existe e a tensão desaparece totalmente quando tudo se resume a uma cena onde os dois ficam cara a cara num diálogo corrido a fim de explicar as motivações futuras da trama;
– O amor entre Light e Mia não beneficia o protagonista e se torna o real motivo de sua decadência e não sua megalomania por poder sendo confrontada pelo representante da justiça dos homens;
– Maneirismos e palavrões – ao melhor estilo jovem norte-americano – são tão desnecessários em alguns diálogos que não convencem a formação do caráter e personalidade de Light, Mia e seus antagonistas;
– O universo do Death Note não é explorado;
(O maldito caderno da morte)
Explicando…
Vamos explicar a seleção desses pontos positivos e negativos e entrar no mérito da discussão sobre a linguagem fílmica da Netflix e o movimento cult presente em tudo isso.
Primeiro de tudo, o filme faz de forma bem apresentada o plot para o uso caderno. No mangá/animê original Light se move pelo desejo de ver a justiça japonesa ser cumprida de forma exemplar com condenações fortes e irremediáveis para bandidos num forte apelo por uma assepsia do mal presente na humanidade. Lógico que no filme isso ainda existe, mas a motivação é muito mais simples do que aparenta. O Light da Netflix é um nerd que sofre bullying, mas que também se aproveita das situações para se dar bem [vendendo cópias das atividades escolares]. Ele usa o caderno inicialmente para se vingar de seu agressor e depois para matar o assassino de sua mãe. Ou seja, ele é mais humano do que se pode ser ao ter em mãos um poder sobrenatural de matar.
Enquanto no mangá/animê as pessoas começam adorar os atos de Light criando a identidade do Kira, no filme o protagonista junto de Mia (que apresenta uma mente mais perversa que a dele) criam a personalidade Kira para que possa ser ovacionado e assim criar um sentimento de adoração à ele. É aqui que o primeiro ponto negativo se apresenta, pois quando L é apresentado e se lança no caso Kira ele não realiza nada tão engenhoso para confrontar o assassino. A ausência da força-tarefa e o embate midático entre os dois é suplantado e Mia é quem assume o risco de batalhar contra L após Light ver seu pai o desafiando publicamente também.
Death Note gira em torno do duelo das duas mentes brilhantes e isso não existe de nenhuma maneira no filme inteiro. Teorias, armadilhas, insinuações… Nada! Isso é uma característica da linguagem fílmica da Netflix. A empresa que não só faz streaming, mas produz conteúdo audiovisual já se consolidou no segmento de TV Show, com as famosas Séries por Temporada, e no dinamismo de contar uma trama a cada episódio e cada nova fase lançada. No entanto fazer isso no ambiente do Cinema, com os longa-metragens, e ainda por cima com a adaptação de um mangá/animê conceituado é desafiador demais.
(O "duelo de intelectos" entre L e Kira)
Optar por enfatizar um elemento em detrimento de outro dentro de uma trama joga de imediato com o gosto dos fãs. A Cultura Pop Japonesa tem um estilo narrativo consolidado e quando isso é modificado provoca reações nada amistosas no público. A Netflix não previu isso, ou se sim fez como fez para mostrar que o conceito de adaptação – no caso em questão inspiração – não leva em conta o público, mas sim o desejo de adaptar a obra.
A contextualização de Death Note (2017) para o olhar norte-americano com toda certeza quebrou o clima mais sombrio da trama, em compensação foi como um alívio até mesmo para os mais temerosos com o grande número de conflitos da obra. Um exemplo é a questão das regras do caderno. Somente os mais fãs sabem todas ou conseguem pensar em ocasiões onde são usadas. No mangá/anime Light domina as regras e mesmo assim perde no fim. No filme é deixado bem claro que ele se confunde com tantas regras e isso é bom, pois ressalta seu lado humano e o quão perigoso é o domínio do sobrenatural, o que num olhar mais racional parece ser mesmo impossível.
Esses são efeitos do movimento cult na Cultura Pop Japonesa. A Netflix se apropria a cada dia mais da linguagem do animê ao produzir suas animações originais e ao exibir outras vindas da indústria japonesa. Seu intuito é construir a base de fãs otaku no seu grupo de consumidores, mas não pode deixar de atender seus fãs mais antigos e sempre prioritários: o público norte-americano. Mesmo sendo uma empresa de atuação internacional seu foco é adaptar à cultura de seu público. No caso de obras vindas do oriente para o ocidente ela sempre dará preferência para a contextualização mais presente do cotidiano de seus usuários.
(Mia, uma menina má)
O final do filme é o ponto mais interessante. Diferentemente do que acontece no animê, por exemplo, onde L perde para Kira, mas esse tem sua morte ao final de tudo, no filme da Netflix o final é sugestivo. L tem a chance de dar um fim no Kira e Light reconhece que foi derrotado ao confessar para o pai que era o assassino. Ryuk é quem nos deixa no empasse ao sorrir para o garoto. Morreu? Matou? Não se sabe e isso deixa um gostinho de suspense sobre o duelo que não chegou a existir, pois as duas mentes não são mais inteligentes e sim duas pessoas loucas e desgastadas pelo sinitro jogo do Deus da Morte.
Resta esperar para saber como será a repercussão em longo prazo de Death Note (2017) isso definirá o que a Netflix poderá vir a fazer envolvendo ícones da Cultura Pop Japonesa em suas produções que vão além do animê. O cult do cinema norte-americano já havia sido questionado pelo filme A Vigilante do Amanhã: Ghost in the Shell (2017) e deve ser mais e mais debatido após essa última estreia. Para os anos seguintes teremos Os Cavaleiros do Zodíaco e One Piece entrando no debate. Por hora ao menos é correto afirmar que a lingaguem fílmica cult usada nessas adaptações das narrativas japonesas já servem para apagar o fiasco que um dia foi Dragon Ball Evolution.
Até a próxima e… Sayonara!
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P.S.: A dublagem brasileira embora muito boa compromete o filme com os maneirismos e palavrões nada enfáticos que existem no original em inglês, mas que parecerm forçados na versão em português. De certo modo até desnecessário em muitos momentos. Mesmo assim é ótima e mostra o empenho da Netflix em atender o público de várias maneiras.