(Capas dos sete volumes do mangá Koe no Katashi)

 

 

Você que já estava sem esperanças para a segunda parte da análise de Koe no Katashi peço desculpas pelo atraso (InuYasha e sua turma acabaram roubando a cena no mês que se passou). Como prometido nesse segundo momento de comentários sobre essa obra de arte que é o mangá de Yoshitoki Ooima falarei sobre o artifício do bullying na narrativa conduzida nos sete volumes lançados pela Kodansha.

Antes se você perdeu a primeira parte ou quer revisar saiba que falamos sobre o primeiro artifício destaque do mangá: a surdez. Você pode saber mais aqui.

E então: preparado? Vamos falar então do bullying em Koe no Katashi!

De início só posso dizer que a obra tem como tema principal o bullying. Por mais que o artifício da surdez na protagonista Nishimiya Shoko seja chocante para muitos (desculpe o tracadilho) ele não é o ponto máximo da obra. Quando Shouya Ishida, um perfeito estereótipo de bully, passa de agressor para vítima é que percebemos a intensidade do que se quer falar nas páginas desenhadas por Ooima-sensei.

Em uma definição simplificada bullying é: termo utilizado para descrever atos de violência física ou psicológica, intencionais e repetidos, praticados por um indivíduo ou grupo de indivíduos causando dor e angústia, sendo executadas dentro de uma relação desigual de poder.

Certo, já sabemos que bullying é um consequência de uma relação desigual de poder. Então é o poder o ‘mal’ dessa história. Mas como assim? Bom, deixamos passar despercebido, mas é do íntimo do ser humano que ele busca ser especial. Dentro da vida em sociedade estamos sempre agindo de modo a ser destacado. Até mesmo aquele que bate no peito por “não precisar de atenção” massageia seu ego toda vez que alguém fala sobre sua conduta altruísta, simplista etc. Queremos atenção! Queremos ser vistos e é isso que nos realiza. Negar tal afirmação é hipocrisia. Não, não quero ser radical. Quero apenas que você entenda então que essa é a razão do bullying.

(Destaque na segunda metade do mangá, Ueno Naoka se deixar levar pelo ódio e por várias vezes humilha Shoko)

 

Em que etapa da vida somos mais sinceros, verdadeiros e objetivos quanto as nossas ações, pensamentos e sentimentos? Resposta correta: Infância. Mesmo nas famílias mais bem doutrinadas moralmente há a aparição de uma criança que necessita de atenção. E essa atenção que falo não é carinho, mas sim visibilidade perante os adultos.

No contexto de Koe no Katashi, não só Shouya Ishida, mas sim todos de sua classe viviam por atenções. Em seu micro universos da vida infantil eram como "sóis" que necessitam de astros girando entre suas órbitas. A aparição de Nishimiya Shoko abala a estrutura dessa mentalidade. Alguém que é livremente anunciada pelos adultos como “especial”. Alguém que recebe atenção sem nem fazer esforço. Alguém que não se pode aceitar.

Shouya, como bully, era reconhecido entre seus pares por destacar-se como um “sol vibrante” em meio aos demais astros. Ele não só se sentiu importante perante os ditos colegas como achou-se no direito de menosprezar Shoko por ela ser diferente.

Uma reviravolta nessa história é que depois de tantos atos de bullying – como já sabemos – Shoko troca de escola e a turma onde ela estudava, para fingir uma falsa preocupação e levantar um falso moralismo, acusou apenas Shouya pelo ocorrido. Não vou dizer aqui que criança são maduras o suficiente para orquestrar atitudes tão adultas como esta, em que elegemos um bode expiatório para nossas transgressões e frustrações. O ocorrido, embora não seja dito diretamente no mangá – e é a crítica feita na narrativa – é que o bullying e suas consequências são reflexos da má educação do menores que um dia formarão a sociedade.

Por educação me refiro a questões como ética, solidariedade, respeito, justiça, honestidade, bom caráter. São conhecimentos que são apreendidos no convívio familiar, escolar, da comunidade… No mangá a crítica é feita a uma sociedade japonesa que prega a aceitação de todos pelo bem comum, mas que é extremamente individualista, egoísta/egocêntrica, contra o diferente (não muito diferente do que é o Brasil ou qualquer outro país do mundo).

O ponto alto do mangá nessa questão do bullying é a remissão. Será mesmo que é possível um bully se redimir dos seus pecados? A quem duvide que não. E esse é outro problema da sociedade: achar que ninguém tem o direito de poder/querer mudar. Shouya não aguentou ser o alvo do bullying, da violência, da rejeição daqueles que um dia considerou amigos. Sua dor foi tanta que já não era capaz de enxergar em ninguém um conhecido. Todos eram estranhos com um enorme “X” na face. Incógnitas.

(Com o bullying Souya passou a enxergar todos a sua volta com enormes "xis" escondendo suas faces)

 

Souya viu o quanto devia para Nishimiya Shoko. É bem verdade que não se pode concertar o passado – e ele descobriu isso a duras penas -, entretanto nada impede que se escreva a cada dia, cada hora, cada minuto, um novo futuro. Ele desejou isso para si. Mesmo assim Shouya teve que descobrir que isso só não basta. O bullying deixa marcas na vítima, mas também no agressor. Ele nunca será encarado como alguém que pode ter mudado. No entanto Nishimiya Shoko acreditou nisso e o amou. Um amor adolescente, até um pouco infantil em meio a discussões e situações maduras ao extremo, mas um amor sincero e verdadeiro. Esse é o poder do amor!

Mas voltemos a falar de bullying. Antes de fechar esse texto quero focar todas as atenções dos demais personagens da narrativa na figura de Ueno Naoka. Uma garotinha que no começo do mangá era apenas mais uma das colegas de classe de Shoko e Shouya que odiavam a atenção que era necessária ser dada a menina surda e que depois repudiara o menino valentão quando o bullying chegou ao extremo. Alguém vivendo em contrastes.

No entanto ela o repudiou não porque tinha raiva do fato de ele ser um valentão. Como deixa claro na narrativa, ela odeia Nishimiya Shoko. Seu afastamento se deu por um outro tipo de bullying. Um bullying passivo e quase imperceptível: a pressão social. Ueno não queria se tornar alvo do bullying sofrido por Shouya por estar com ele. Temos essa pré-disposição em renegar quem admiramos/amamos por simplesmente não querermos ser excluídos dos nossos círculos.

Ela se culpou o resto da infância inteira por nada ter feito por Shouya e piorou tudo ao ver Nishimiya Shoko aceitar o valentão mesmo depois de tudo o que ele lhe fez passar. Ueno gostava desde criança do pequeno Shouya. Ueno é o exemplo de ser humano vazio, que se sente bem apenas diante do mal estar dos próximos. Digo isso porque mesmo ouvindo da boca de Shouya que ele queria mudar ela não aceitou. Achava que Shouya não precisava mudar e sim esquecer de Shoko. Só não queria admitir que era tão culpada quanto ele.

Ao longo da narrativa muitos outros personagens nos são apresentados com seus problemas com o bullying (vítimas e/ou agressores). Todos vivendo o dilema de aprender a conviver e aceitar as diferenças de cada um. Aprendendo verdadeiramente a criar laços.

Para uma cultura tão distinta como a japonesa o mangá é um legítimo ganho de direita dado pelo próprio Muhammad Ali (que já não está mais entre nós) no ego de cada indivíduo. Respeitar o próximo é um mandamento cristão (presente em outras expressões religiosas também) que se refere a uma cultura: a Cultura do Amor!

 

(frame do teaser-trailer do filme de Koe no Katashi anucniado pela KyoAni)

 

Não falo mais nada sobre o mangá porque você tem que ler! Mas deixo aqui – para ficar aquele gostinho de quero mais -, a menção ao filme adaptado para anime de Koe no Katashi que será produzido pela Kyoto Animation. Só posso dizer que vou verter muitas lágrimas com essa leitura da obra. [Você pode assistir o teaser-trailer aqui].

Enfim, espero ter sido bem recebido com esta análise.

Sayonara!