Olá, meus lindos. Cá estamos outra vez para mais um de nossos encontros semanais. Nesta semana, vamos dar uma olhadinha em um tema que, apesar de algumas pessoas nunca terem ouvido falar sobre ele, provavelmente já o experimentaram. Me refiro ao fenômeno do chamado Vale da Estranheza, que faz com que filmes como O Expresso Polar e animes como Aku no Hana pareçam tão diferentes (e até incômodos) para grande parte da audiência. Sem mais delongas, bora lá.

A história do Vale da Estranheza

O Vale da Estranheza teve início nos anos 70 quando o pesquisador e professor de robótica japonês Masahiro Mori realizou um estudo sobre a relação entre humanos e robôs. Em sua pesquisa, o professor Mori chegou a uma conclusão interessante e instigante: quanto mais um robô se parece com um humano, mais nós tendemos a nos simpatizarmos com ele… mas só até um certo ponto. Se um robô se parece com humanos, mas não é exatamente igual à uma pessoa, nós tendemos a achá-lo estranho.

Por exemplo: já viram um daqueles robôs aspiradores de pó? Pois bem, um robozinho daquele tipo, apesar de ser bem bonitinho, gera, no geral, pouca empatia dos seres humanos. Um robô não tão parecido com seres humanos, mas com algumas características que podem ser associadas com elementos humanos (como braços e pernas), tende a gerar mais empatia que o robô aspirador. Dois bons exemplos desse tipo de robôs são o R2-D2 e o C-3PO, de Star Wars. Um robô humanoide super-realista como os Androides 17 e 18, por sua vez, tem a capacidade de gerar grande empatia.

Por outro lado, temos robôs que se parecem mais com seres humanos que o R2-D2 ou o C-3PO, mas não se parecem tanto quanto os androides de Dragon Ball. Esses seres ficam em uma “zona cinzenta” de semelhança aos humanos, o que faz com que nós os estranhemos. É justamente essa “zona cinzenta” que recebe o nome de Vale da Estranheza (isso porque, em um gráfico disposto em um plano cartesiano, com o eixo X sendo a semelhança com humanos de um robô e o eixo Y a nossa afinidade com essas máquinas, a afinidade apresenta uma grande queda – um vale – conforme a semelhança com humanos avança).

Gráfico que representa o Vale da Estranheza. A parte mais baixa do gráfico (o vale) representa o momento em que robôs (ou mesmo personagens animados) ganham semelhança com os humanos, mas não são exatamente iguais a nós, gerando aversão. Imagem via canal Ciência Todo Dia.

O Vale da Estranheza na prática

Isso significa que existe uma “faixa de semelhança” entre robôs e humanos que deve ser evitada, ou então teremos cada vez mais “robôs Sofia”. No entanto, o vale da estranheza não se aplica apenas à robótica, estando muito mais presente no nosso dia a dia de consumidores da cultura pop do que imaginamos. Dois bons exemplos são o filme O Expresso Polar e o anime Aku no Hana.

O Expresso Polar é um filme animado lançado em 2004. É bem provável que você, leitor, já deva ter assistido ou ao menos dado uma olhada nessa produção, pois, graças à sua temática natalina, é um dos filmes mais exibidos nos televisores brasileiros nos últimos anos em épocas próximas à data do bom velhinho (me pergunto se a pessoa que deu esse apelido ao Papai Noel achava que a maioria dos velhinhos era má). A obra usa a técnica de captura de movimentos para dar vida a personagens 3D em sua aventura rumo ao Polo Norte, e é justamente isso que faz com que o vale da estranheza esteja presente no longa-metragem. O filme, graças às técnicas empregadas, faz com que os personagens possuam grande semelhança a seres humanos reais, mas eles continuam sendo personagens virtuais, fazendo com que eles se pareçam conosco, pero no mucho. Por isso, muita gente se sente desconfortável ao assistir ao filme (mesmo com o inigualável Tom Hanks no elenco).

Um outro exemplo, bem famoso entre os otakus um pouco mais veteranos, é o anime Aku no Hana. Quem nunca olhou para aquela obra e ficou pensando a razão de ela ter aquele traço? Só mesmo quem nunca a viu! Mas, na verdade, um traço mais “duro” e “sujo” como aquele foi intencional e combina com a proposta da obra, ainda que não se encaixe nos padrões da animação japonesa de massa com o qual estamos habituados. Coesão com o contexto à parte, realmente não é o anime mais lembrado pela galera quando o assunto é beleza do traço, e isso se deve justamente a essa semelhança não tão profunda com a realidade.

Um anime em que os personagens possuem cores de cabelo que transitam rapidamente entre o rosa e o azul-claro? Tudo bem! Um anime em que os olhos dos personagens ocupam mais da metade do rosto? Sem problemas! Animações recheadas de antropomorfismo em que cidades inteiras são destruídas, leis da física são constantemente quebradas e a barreira espiritual entre deuses e humanos é vigorosamente rompida em prol do entretenimento nosso de cada dia? That’s alright, baby! Agora, um anime em que os personagens são apenas meio parecidos com humanos? Que coisa feia e inaceitável! E isso tudo graças ao fenômeno do Vale da Estranheza. Quando vemos o Goku atingir uma nova transformação (e, consequentemente, uma nova cor de cabelo), aquilo não nos causa desconforto porque é facilmente identificado pelo nosso cérebro como algo irreal, fictício. Quando vemos Aku no Hana, porém, a aversão visual é algo plenamente natural e esperado (até mesmo para os produtores do anime).

Os motivos por trás do Vale da Estranheza

Na real, nem mesmo os pesquisadores e cientistas já chegaram a um consenso sobre o que gera o Vale da Estranheza, mas vamos ver algumas teorias formuladas acerca do assunto que tentam explicar suas origens, começando pelo que é chamado de “violação da norma humana”. Ou seja, quando um robô, um personagem animado ou algo do tipo se parece com um humano, mas nem tanto, nós tendemos a voltar nossa atenção justamente para as características daquele personagem ou robozinho que não batem com as nossas, gerando estranhamento.

Outro possível motivo para o Vale da Estranheza reside em mecanismos de proteção que o os seres humanos possuem. Nosso cérebro tende a aceitar a mortalidade como um fato para todas as criaturas, mas, ao visualizar algo que ser parece (mas nem tanto) conosco, nosso cérebro entende, ainda que de maneira subconsciente, que estamos diante de algo imortal, que viola a regra da mortalidade – e isso gera aversão àquilo.

Outras hipóteses seriam o instinto de autopreservação humano, que nos leva a evitar seres e situações potencialmente perigosos para nós e que, ao ver algo parecido, mas não idêntico, a um humano, supõe que aquela semelhança não tão acentuada foi gerada por alguma doença ou problema, gerando a aversão como forma de proteção; e a hipótese dos “sinais perceptuais conflitantes”, em que nosso cérebro apresenta duas reações opostas a um mesmo estímulo. É como se o cérebro tivesse dificuldade em lidar com o robô ou personagem quase humano e não conseguisse chegar a uma resposta sobre o que nós deveríamos sentir ao encontrar com um desses. O resultado é um estresse psicológico e consequente sentimento de aversão.

Por último, mas não menos importante, temos a seguinte hipótese, formulada por… eu mesmo: se Aku no Hana tivesse sido animado pelo Studio Ghibli ou pela Kyoto Animation, tudo estaria resolvido (ou não).


Por hoje é só, galera. Temos um novo encontro marcado na semana que vem, nesta mesma coluna e nesta mesma rádio, que é do seu jeito, do seu gosto. Bye bye.