Fullmetal Alchemist (2017) estreou nesta semana no catálogo da Netflix. Diferente das resenhas comuns feitas por aí vamos falar de seus referenciais sonoros de forma específica. Isso porque nos critérios Edição e Mixagem de Som o live-action apresentou algumas incoerências em relação ao nosso repertório afetivo construído pelas duas séries em animê. Vamos comentar também se essas incoerências são agravantes e qual sua relação com o mangá original de Hiromu Arakawa.

A Memória é uma categoria de estudo dos campos da Psicologia e Neurociência. Está relacionada aos traços cognitivos e função psicológica elementar que pode ser tanto natural ou lógica. Lev Vigotski (2007, p.31) conceitua memória como algo "excepcionalmente apropriado para o estudo das mudanças introduzidas pelos signos nas funções psicológicas, uma vez que revela com clareza a origem social dos signos e o seu papel crucial no seu desenvolvimento indivudual".

Essa conceituação de memória pode ser interpretada da seguinte forma: a capacidade de atenuar um sigificado a determinado elemento ou situação a partir das experiências vividas anteriormente e relembradas pelo cérebro num ato de autopreservação.

Isso parece meio denso a primeira vista, mas tem tudo a ver com nosso tema. Fullmetal Alchemist, acima de tudo, é uma narrativa fortemente simbólica. Cheia de referências literárias – históricas, pagãs e sacras – a obra de Hiromu Arakawa ganhou a admiração de muitos justamente por sua leitura de fácil interpretação para situações e mitologias provinientes dos estudos ocidentais.

A Cabala, a Alquimia, a Religião, a Ciência… Esse são alguns dos aspectos presentes na obra original e suas versões em animê que se perpetuaram no live-action. Cumprindo assim metade do seu papel semiótico por meio da trama e dos referenciais imagéticos. Entretanto, o mesmo não foi obedecido nos referenciais sonoros.

Sabemos que Edward e Alphonse Elric, por causa de sua tentativa falha de transmutação humana, perderam seus corpos (Edward somente alguns membros) e tiveram essas perdas substituídas por objetos metálicos.

O som do metal é uma vibração sonora abafada e que se propaga conforme o atrito promovido no objeto. Varia também do tipo de metal e suas características, mas sempre soa no ar. Ao longo de todo o live-action tivemos diversas cenas envolvendo Ed e Al em combate e não conseguimos pegar referências sonoras a essa similaridade metálico-mecânica proviniente da armadura ou dos automails. O automail, por sinal, é uma peça eletro-mecânica e que deveria produzir rangidos quando dafinicados e… Sim, isso também não foi bem explorado pela equipe de Edição de Som do filme.

Mas o que mais chama a atenção é a falta de um tipo de som bem específico e importante para o universo filmico do longa-metragem: o som da transmutação.

Veja a cena a seguir retirada da animação:

 

Percebam que o processo de transmutação ocorre também sonoramente. Edward Elric, ao reunir as mãos, é acompanhado por um soar metálico (muito provavelmente produzido pelas vibrações em seu automail). Esse som se repete de forma parecida em outras ocasiões para Alphonse e outros alquimistas. Esse seria o gatilho para o início da transmutação para nós enquanto telespectadores. Isso quer dizer que no universo narrativo não é necessário que as personagens ouçam tal ente sonoro, mas para nós enquanto apreciadores do show isso é um elemento fundamental para entendermos que a tão falada transmutação acontece e será visível. 

Entenda que apenas a imagem não é suficiente para que possamos sentir a ação na cena em que acontece a transmutação. Volte no vídeo e assista-o na função mudo. A sua reação é a mesma? Provavelmente que não. Mesmo que não escute o som do vídeo a sua mente vai relembrar aqueles nuances sonoros pré-estabelecidos. Isso é a memória entrando em ação!

Ainda no processo de transmutação outro som fudamental é estabelecido após o soar metálico, que é o som da estática elétrica que remete aos clarões de raios que indicam a ação sólida da transmutação (onde um elemento muda de forma para outro mantendo suas propriedades orgânicas). Logo, em Fullmetal Alchemist a transmutação é um símbolo de ação que é composto de som e imagem e um precisa do outro para dar uma noção de verosimilhança para aquele universo narrativo.

Bom, o fato é que no filme live-action isso realmente não acontece. Seja nas transmutações feitas por Ed e Al ou mesmo durante o processo de reconstrução corporal dos homúnculos (que é um tipo de transmutação). Isso pode parecer meio exagerado, mas a ausência desses elementos prejudica a aproximação do telespectador com a trama do filme. Uma adaptação em longa-metragem significa reformulação da história. Se fizermos isso e não procurarmos manter a maior parte das referências da obra original (ou seu derivado de referência) corre-se o risco de se perder características de aceitação que estão vinculadas à memória afetiva de quem vê.

No mangá essa marcação simbólica dos sons sempre existiu e se apresenta na figura da onomatopeias e seus kanjis "sonoros". Se no ambiente impresso isso é possível, no do audiovisual é indispensável. 

Esse sem dúvida foi o maior equívoco deste filme. Felizmente suas outras atuações – Efeitos Especiais e Elenco – conseguem suprir minimamente suas deficiências e evitar que seja depreciado pelo público mais aguerrido, contudo falhar na expressividade sonora durante a Edição e a Mixagem Sonora do filme é algo que não se deve ignorar e que com certeza aponta ainda as incoerências existentes das adaptações de animês para o cinema.

Som e Memória caminham junto desde o nosso nascimento. Quando o bebê ouve a voz da mãe grava aquela informação na mente e leva isso para a vida toda onde tem na voz materna um referencial de carinho e segurança. Num filme, Som e Memória nos ajudam a construir um ambiente de realidade (mesmo que essa realidade seja fictícia e não condizente com nosso mundo) e assim transmite emoções e sentimentos ao longo de cada ato da trama.

Até a próxima e… Sayonara!

 

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REFERÊNCIA:

VIGOTSKI, L. S. A formação social da mente. 7. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.